a voz da lua

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uma garota com sorte

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maya
nov 21, 2022
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uma garota com sorte
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dentro de cada um de nós existe um predador. você já conhece o seu?

talvez você e ele já tenham se visto, assim, de relance. pode ser que ele tenha se apresentado pra você num sonho, mas ao acordar, você não se lembrou mais dele. com certeza, em algum momento da sua vida você o desejou e sentiu, no seu íntimo, medo de que isso nunca acontecesse.

posso dizer que finalmente eu conheci o meu. minha metade da laranja. estamos juntos faz poucos dias, até me afastei um pouco dos amigos. precisei desse tempo com ele. estamos naquele começo, em que tudo é mais intenso, emocionante e cheio de clichês. ondas de lágrimas e declarações, não tenho nem vontade de comer. só quero estar com ele.

houve uma noite em que ele, cansado, adormeceu primeiro. e eu pude observá-lo com calma. acompanhei os detalhes do seu corpo, da sua pele, seu rosto, suas manchas… de repente percebi que ele me parecia familiar. olhando de perto me dei conta de que a gente já tinha se visto.

eu acho que a primeira vez foi quando eu estava com a minha avó paterna na sala da casa dos meus pais. minha avó e eu estávamos tomando um café com um docinho enquanto ela me contava sobre como conheceu o meu avô. tudo parecia tão romântico: num fim de tarde, depois que ela saiu do trabalho (ela trabalhava numa fábrica de chocolates) ele estava à sua espera no ponto de ônibus, para se declarar. ele a esperou para se declarar. achei bonito isso. eu a escutei fascinada, como quem assiste um desenho da Disney, sem me dar conta de que aquela era uma história real. não me atentando ao fato de que meu avô veio de Nápoles e de que minha avó, por conta da época, foi uma mulher muito reprimida. eis que, no meio daqueles relatos, minha avó conta, sem jeito, mas tentando naturalizar a atitude do meu avô, que não foi ela quem escolheu o nome do seu filho (meu pai). senti um aperto. pedi pra ela repetir. pois é, ele me avisou que registrou o nome e pronto. fiquei um pouco paralisada com o depoimento da minha avó. achei meu avô invasivo, indelicado. como pode ser que ela não tenha tido a possibilidade de escolher o nome do seu filho? aquilo me pareceu tão desrespeitoso. ali tive a certeza de que aquele gesto do meu avô, aparentemente inofensivo, era apenas a ponta do iceberg, o iceberg que a minha avó carrega até hoje nas costas, duro, gelado, rígido em sua forma e conteúdo, uma coisa só, sem camadas. por que ela não reivindicou seu direito? por que ela não gritou? porque ela tinha acabado de parir. esse tipo de atitude do meu avô nunca chega quando você está preparado pra receber, se é que existe alguma preparação pra esse tipo de coisa.

minha avó e meu avô paternos

a segunda vez que meu predador e eu nos cruzamos foi quando ouvi da minha mãe que a minha outra avó, mãe dela, era uma mulher tão generosa, mas tão generosa, a ponto de escrever letras de músicas e regalar a quem fosse que estivesse precisando. quando ela partiu desse plano, estava sem nada, inclusive sem o devido reconhecimento pelo seu talento e contribuição para a música popular brasileira, para a nossa cultura. diante deste relato, me veio aquele mesmo aperto no peito. uma leve sensação de revolta. por que ela distribuiu seu valor mais precioso assim, de maneira tão banal?

minha avó materna Dora Lopes

entendi que, apesar de nós dois, meu predador e eu, nos acompanharmos desde a infância, por exemplo, quando eu queria mostrar pro meu pai que eu era boa em matemática, fracassando obviamente, já que meus interesses eram outros; apesar de nós dois, meu predador e eu, nos acompanharmos desde minha adolescência, quando eu queria ter o cabelo e o corpo ideal para satisfazer os meninos da escola, meninos que nunca deram a mínima para se encaixar em qualquer padrão para nos agradar; apesar de nós dois, meu predador e eu, escutarmos juntos as histórias das minhas avós e da minha mãe, nós não antecipamos nosso encontro. não fomos ansiosos. sempre tivemos uma cumplicidade silenciosa, entre nós pairava um ar confiante, uma intuição de que o fluxo da vida naturalmente nos uniria para o grande momento!

mayara adolescente

e este momento chegou! sinceramente? eu me sinto uma garota com sorte! porque meu predador não é como todos esses por aí, ele é diferente! eu diria que ele quase não é machista! ele me ajuda nas pequenas coisas, nas grandes não, apenas nas mais superficiais, nas domésticas! mas tudo bem, isso é sinal de que ele vai ser um bom pai (mesmo eu ainda não tendo certeza se quero ser mãe); eu consigo moldar ele muitas vezes, por exemplo, coloco a roupa que eu gosto nele, educo ele em casa para que ele não fale besteiras na rua; eu também ajudo ele com as contas, tadinho… eu sei que ele pode parecer meu filhão, mas não tem nada a ver, é que é inevitável que meu lado maternal salte de mim às vezes! ele é brincalhão; ele é família! ama tanto a família que sente culpa quando não se faz presente com seus pais; é paciente, tímido, calmo. tem aquele humor ingênuo, meio bobão! mas eu acho fofo! são muitas qualidades que podemos dizer que é o mínimo embora não seja fácil achar isso por aí, não, viu? que sorte a minha!

mas calma, mulher, você também vai encontrar um assim um dia! não é possível que só eu tenha tido essa sorte! rs! demorou pra mim também, viu?

mayara criança

momento romântico: eu me pergunto como eu demorei tanto para te reconhecer se você esteve em tantos lugares, se você se apresentou de tantas maneiras pra mim e muitas delas tão repetidas e padronizadas. hoje, meu predador, eu lhe faço essa declaração pública de amor: sim, você é único! você não é meu avô ignorando o direito de escolha da minha avó, você não é o boicote de uma mulher talentosa como a minha outra avó foi; você não é a minha criança que acha que amor é ser aceita; você não é a minha adolescente que muda sua própria aparência para agradar aos homens; você não é a ideia de que estar com alguém é se sentir mãe ou filha, ao invés de companheira; você não é o medo da escassez, você não é todos os nãos que uma mulher recebe durante a sua vida inteira quando ela não performa a feminilidade padrão, você não é aquele que me subestima e me trata mal, você não é a recusa. você é singular. tem esses olhos bem parecidos com os meus, é verdade. e, que coincidência, nós dois temos o mesmo signo! a mesma cor de cabelo, o mesmo peso, altura… meu deus, que romântico! somos praticamente um só! nunca me aconteceu algo assim antes!

acabo de me dar conta,

a verdade é que você, meu predador,

sou eu.

você se materializou em tantas pessoas, vozes, construções sociais, mas, no fundo era sempre eu quem estava lá para confirmar um lugar que hoje, a partir do nosso encontro, eu não ocupo mais.

um lugar que precisei reconhecer dentro de mim.

eu não vou carregar o iceberg, trago fogo! derreto pouco a pouco este fardo gelado e pesado das minhas antepassadas. serei incansável, porque o elemento principal para essa mudança é não desistir. reconheço que tudo o que vejo de nocivo no mundo está dentro de mim, acolho a dureza da vida de fora e da vida de dentro e me caso.

caso com meu predador. lhe dou nome e sobrenome e uma casa. no meu discurso lhe digo que ele deve sempre falar baixo comigo. ao menor sinal de qualquer incômodo eu espero que ele me sussurre no ouvido: olhe lá, mais um predador. e, juntos, iremos afastar qualquer coisa que nos limite.

nesta noite tão especial coloco meu vestido branco e emocionada jogo meu buquê para trás com o desejo que você o agarre para, assim como eu, reconhecer o predador que existe dentro de você.

que essas flores brancas lhe tragam a clareza para saber que não há nenhum lugar que possa te oprimir ou que você deva tentar se encaixar, é você quem dita onde quer estar.

o buquê está no ar, em movimento! ele segue em sua direção…

vai pegar?

*


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