“Holzwege são, em alemão, os caminhos na floresta abertos pelos lenhadores para poder transportar os troncos depois do corte: por esses caminhos não se vai para lugar algum, só se entra na floresta até chegar a um ponto de onde só dá para voltar.
Deveríamos todos percorrer com alegria, na nossa cultura e no nosso pensamento, caminhos que não precisam ir a lugar nenhum, que apenas nos dão acesso a alguns buracos na floresta.”
[O sentido da vida, Contardo Calligaris]
Longas caminhadas, é o que sugere a coach de um podcast de auto ajuda que eu escuto todas as manhãs. Os dias nascem nublados e gelados. Geralmente eu acordo com o ruído dos carros que, num trânsito que se forma em horários específicos, param na frente da minha janela. Alguns motoristas mais ansiosos dão três buzinadas de leve para que o motorista distraído se apresse pois o sinal está para ficar verde, o que me faz acordar antes da hora prevista. Quando abro meus olhos pensamentos de todo tipo de ordem invadem a minha mente, como se estivessem à espreita, como atletas corredores agachados na linha marcada no chão antes do anúncio do início da corrida.
Acordo bem cedo para ter tempo de negociação com meu cérebro. Abro as janelas e em pouco tempo estou pronta para a tal da longa caminhada. No percurso muitas ladeiras, o som de alguns poucos pássaros, carros apressados, comércios abrindo, alguns já abertos, cachorros e seus donos com cara de sono, uma vitrine com apenas um vestido e casas. Por sorte ainda há um número considerável de casas no bairro. Eu amo casas, minhas preferidas são as térreas. Casas são em sua maioria antigas e aquilo que é antigo me traz certo aconchego. Não me considero uma pessoa tradicional de fato, acho que o passado me fascina porque tem consistência, evoca memórias, conta histórias. Sou nostálgica por natureza. Casas me trazem flashs da infância, crianças brincando na pracinha, bicicletas jogadas na calçada, pessoas sentadas nesta mesma calçada, cheiro de comida saindo pelas janelas. Me lembra meus avós, os avós que não tive, mas que sempre desejei ter.
Hoje eu vi uma daquelas casas de portãozinho baixo com um carro na garagem, um gol antigo. Os vidros estavam embaçados do frio que fez durante a madrugada e o carro estava ligado porque o dono do carro estava, muito provavelmente, esquentando o motor para poder sair. Este tipo de flagra é perfeito para alguém que aprecia certos hábitos antigos. Sou apaixonada pelo tempo das coisas. O tempo que algo leva para ser, para agir. Fiquei olhando aquela cena. Um homem dentro do carro, dentro de sua garagem semi-aberta. Um motor de um carro que precisa esquentar é uma oportunidade para que seu dono fique mais presente.
Um homem sentado dentro do carro numa manhã fria. Sem querer ele flagra sua própria imagem no retrovisor. E pausa. Ele repara em sua barba com pelos brancos. Nota fortes olheiras, não sabe mais se elas representam cansaço ou velhice. Ainda é cedo, a rua está silenciosa. Ele está isolado, como que numa bolha, já que os vidros estão embaçados. Então que ele tem tempo e espaço para olhar mais profundamente para sua própria imagem. Ele sente uma leve angústia, mas não quer se ater a ela. Ele lembra de quando era criança, de como tudo aquilo parecia mágico, mas também consegue inserir nesta memória aquele momento em que se sentiu só, envergonhado, excluído. Ele sente um gosto amargo na boca. Ele lembra da sensação de quando teve febre alta ainda muito pequeno. Ele sente um aperto no peito que o fez lembrar do maior medo que sentiu em sua vida, já na adolescência. Ele sente raiva dos seus pais e amor e saudade. E medo de novo. Ele pensa que precisa fazer a barba. O motor não para de esquentar. Este homem sabe que é impossível voltar no tempo, mas ele não aceita isso, então sua maneira de ficar preso naquela época idealizada é evitar seguir em frente. Ele dá ré e sai da garagem. Eu o vejo partir.
Meu momento preferido do dia tem sido a hora que pauso para fazer um café pra mim. Eu misturo um pouquinho de pó de canela junto com o pó do café. Quando a água está pronta eu a despejo bem devagar e o café cede ao toque quente. Um aroma delicioso invade a casa toda (ela é bem pequena, rs!). Eu me sento para ler com minha xícara por perto. Outra coisa que me traz paz, um livro e um lápis. Sou de sublinhar, preciso reforçar aquilo que me fisga. Eu posso parecer uma senhora de muitos anos ou uma pessoa desocupada, mas não. Esses pequenos hábitos de um dia comum ganharam espaço na minha vida porque eu me planejei para eles (pra além do fato de que sou atriz e meus horários não têm lógica alguma). Porque eles têm um valor inestimável pra mim, ele fazem eu sentir algo bom, eles são como presentes que me dou. Seria isso amor? Amor pela vida? Amor por mim? Por que não ensinam este tipo de coisa na escola? Por que não nos ensinaram a honrar aquilo que nos faz bem, mas nos incentivaram tanto a aturar aquilo que nos causa desconforto? Descobri tardiamente que ser adulto vai muito além de pagar as contas. Ser adulto é saber usar bem o seu tempo. Por isso ser adulto é sobretudo saber dizer não.
“Ao impor limites, você descobre se é amado ou apenas útil”
Tiram todos os dias de nós o tempo. Tiram todos os dias de nós as nossas casas, uma metáfora cruel sobre como estamos perdendo nosso espaço. Em cada esquina assistimos perplexos a construção de mais um edifício com inúmeros apartamentos de 29 metros quadrados. E ainda nos vendem a ideia de que isso é um bom negócio. Uma cidade que nos dá migalhas, uma cidade que ilumina artificialmente suas noites para que seja possível seguir madrugada adiante destruindo para ‘construir’!
Sem tempo e espaço como é possível humanizar-se? É preciso ser forte para burlar tudo isso. Coragem! Aqui vão algumas dicas: