“… Malraux conta que perguntou para um velho padre: - O que o senhor, que passou cinquenta anos escutando as pessoas no segredo do confessionário, aprendeu sobre a alma humana?
E o velho padre: - Aprendi duas coisas. A primeira é que as pessoas são muito mais infelizes do que imaginamos. A segunda é que não existe gente grande.”
Durante uma dinâmica de grupo de um processo criativo nós, atores, tivemos que responder quatro perguntas. Uma delas era:
- Quem é você?
Há muitas maneiras de responder essa pergunta, mas nenhuma delas de fato responderá a pergunta. Quando chegou a minha vez eu queria dizer apenas ‘não sei’ e passar pro próximo, mas pra não parecer desinteressante ou até preguiçosa, eu tentei esticar um pouco mais minha resposta e disse algo como: ‘olha… sei cada vez menos. é isso… não tô entendendo muito o que eu sou de fato… acho que nem sinto falta de quando eu achava que eu sabia bastante sobre mim, eu… não sei mesmo.’ Silêncio. Todos seguiram me olhando como se eu ainda não tivesse concluído minha resposta. Flagrei certa piedade no olhar atento e acolhedor deles. Acho que eles sentiram que eu estou um pouco perdida. Sim. Quem não está, não é mesmo? Eu pensei: O clima tá uma bagunça, de repente chove muito, venta muito, tempestade de areia em Manaus... Com trabalho ou sem trabalho nossa saúde mental está sempre a ponto de se jogar do abismo, ou, pior, sustentá-la tornou-se cada vez mais caro. Tem um genocídio rolando na nossa cara, e, sei lá, ao mesmo tempo, as questõezinhas individuais, por exemplo, sou cobrada de que preciso urgentemente atualizar meu material fotográfico porque supostamente é isso que vai fazer com que os clientes me visualizem como eu poderia ser, maior do que pareço, logo, digna de ser chamada pra um teste. É tão solitário e cansativo ser ator, eu penso. E essa fé que tem que ter em si mesmo, na hora que te chamam, na chance que te dão… Quando estou com a minha sobrinha, ainda que ela tenha poucos meses de vida, eu penso que ela deveria escolher alguma outra profissão na vida. Mas que triste não ser artista. Enfim, devolvo o olhar gratiluz pra roda de atores e sinalizo que a próxima pessoa pode ir.
“Escribes poemas
porque necesitas
un lugar
en donde sea lo que no es”
.
{Pizarnik}.
Escuto atentamente os outros participantes. Engraçado como tem gente que parece tão encontrada, ou, tão calma, ou, que foge totalmente da pergunta pra falar de algo pessoal, como se estivesse esperando a primeira oportunidade que apareceu para ser ouvido. Penso na solidão de cada um de nós daquela roda. Me lembro daquela máxima de que nascemos sozinhos e morreremos sozinhos. Talvez por isso durante a vida o que vale mesmo são as conexões, os encontros, principalmente a presença no encontro. Não compreendo a rapidez com que pessoas surgem em nossos caminhos e saem deles. Sinto um nó na garganta e antes de embarcar num estado melancólico volto minha atenção pra um dos atores e percebo que já faz um tempo que ele segue falando de si. Lembro de um exercício de escrita em que você deve descrever com o máximo de detalhes um ambiente e depois as pessoas e depois a situação. Uma descrição tão minuciosa que pode te levar exatamente onde o autor quer ir ou, ironicamente, pode ter o efeito oposto e fazer você se afastar completamente da cena. Acho que ficou evidente aqui qual foi o caminho que eu segui.
Depois do ensaio, observando a vida real, pessoas pegando o metrô, voltando para suas casas, as luzes da cidade, eu confesso que tive um pouco de preguiça da importância que nós artistas nos damos (ao que pensamos e fazemos). É sempre um pouco chocante sair de uma sala de ensaio e voltar pro mundo que tá acontecendo ‘de verdade’. Não sei muito bem como explicar, parece que dentro do teatro nos sentimos donos de uma história e fora dele lembramos do tamanho do mundo, ele não cabe no nosso texto encadernado e nem nas inúmeras voltas que damos pelo espaço para “chegar” num estado de presença. Claro que o teatro é bem mais complexo e profundo do que isso, mas eu estava tomada por uma sensação de tédio e frustração e também pê da vida por não saber responder uma pergunta, eu estava me sentindo incompreendida por mim mesma: Foda-se quem sou eu, o que eu faço e o que eu penso! Quem quer saber? O teatro, o cinema, a literatura, eu… nada disso é mais importante do que a história de qualquer caminhante desta avenida barulhenta. Meus passos eram tão apressados e pesados quanto meus pensamentos. Entrei no metrô e tive vontade de que ele apenas me levasse pra longe. Uma longa viagem. Meu fluxo de pensamento seguia com o ritmo do trem: Não quero mais dizer o que eu penso, defender ideias, analisar quem eu sou... Sinto vergonha de tudo que já escrevi. Quem quer saber? O que eu sei? Se o que eu sinto é que sei cada vez menos! Envelheço e parece que o mundo se tornou indecifrável: uma grande incógnita, uma carta cheia de códigos, quando descubro uma letra vejo que existe um alfabeto inteiro para desvendar. Chego na minha estação. Percebo que esse fluxo de consciência é um grande boicote. Saio do metrô e a cor do céu, agora mais escuro, me mostra que ele já é outro. O dia se despede e eu também trato de me despedir dessa sensação que me tomou os pensamentos.
“Eu não sou um intelectual, escrevo com o corpo.”
[Clarice Lispector]
Chegando em casa concluo que não irei parar de atuar, de escrever, em suma, de me manifestar. Minha conexão com a vida é através da expressão. A real é que não acho importante o que eu escrevo, mas acho importante escrever.
Eu li num outro livro um diálogo em que uma pessoa pergunta pra outra: - como você se lembra de tudo? e ela diz: - eu não me lembro, eu escrevo.
Me sinto melhor quando associo a escrita com a ideia de memória, este relicário que, eu espero, dure tempo suficiente para que a minha sobrinha possa me ler quando eu não puder mais estar ao seu lado pra gente bater um papo. Temos conversado muito eu e ela porque, por incrível que pareça, um bebê de seis meses já fala bastante. E grita. O mais legal desse momento é que DO NADA a Dora grita e ri. Na maioria das vezes o grito dela nos assusta e acho que é por isso que ela ri bastante depois. E eu nem sei o que responder pra ela, às vezes eu grito junto e a família inteira ri. E essa alegria meio boba nos deixa mudos também, com um nó na garganta porque um dia teremos que avisar pra Dora que o mundo tem muita coisa difícil de tragar, algumas até impossíveis.
Eu até agora não entendi a Dora, não concebo, não cabe em mim a vida deste pequeno milagre. Ainda que ela seja familiar: o rosto igualzinho ao da minha irmã quando era pequena, esse rosto que eu observava com seis anos, enquanto ajudava minha mãe a trocar sua fralda.
Dora, assim como a escrita, reforça a ideia de memória. É como se ela chegasse pra gente não esquecer quem a gente é. Será que família é isso? Será que a Dora é um espelho novinho, mas que no fundo ele reflete a mesma imagem? Resquícios de algumas gerações: o formato dos olhos do pai, a manchinha de nascença no mesmo lugar da avó, o jeitinho de segurar o queixo enquanto dorme, como sua mãe fazia quando era pequena… é bonito e é estranho se reconhecer num corpinho tão pequeno a ávido pela vida. Ela exala memória, mas também mistério. Seus olhos indicam a direção para um futuro luminoso, amplo. Acontece que eu não sei muito bem o que fazer com todo esse horizonte. Devo caminhar em qual direção, Dora? Devo ter pressa? Me ajuda, porque eu não sei.
Me desarmo e me entrego entre seus bracinhos gordinhos. Não sou eu quem a pega no colo, mas é seu corpo miúdo e cheio de dobras quem me acolhe no melhor lugar do mundo. Ela sempre abre um grande sorriso sem dentes como que me dando boas-vindas para seu universo particular e sem fronteiras. Não busco as portas da saída de emergência para fugir, porque sei que com ela não será preciso.
Um bebê é tão situado em si que não precisa construir fronteiras. Suas bordas são invisíveis, têm outro nome: aura. Então me deixo invadir. Estou um pouco viciada neste tipo de relação, me sinto bem, me sinto protegendo e sendo protegida, me sinto forte.
Os encontros, o teatro, a Dora, a vida real me provam todos os dias aquilo que sempre tentei evitar dizer em voz alta: “eu não sei." Ninguém sabe muito bem. E como vou escrever sobre aquilo que não sei? Bom, é o que tentei fazer nesta edição. Espero ter conseguido. ;)
*
Para que você não saia com uma sensação de vazio, de quem olhou, olhou, olhou a prateleira de uma loja e não levou nada, finalizo com uma indicação de um livro que, certamente, é um dos meus favoritos do ano, é dele que tirei o excerto que dá título para esta edição.
SINOPSE:
“Um autorretrato desconcertante, bem-humorado e honesto de um homem que luta para viver em harmonia com o mundo e consigo mesmo. Neste entrecruzamento entre o romance e a autobiografia, o autor não explora apenas os limites da literatura, mas também os da alma humana: a sua e a dos outros.”
Falar sobre si é arriscado e expor suas obsessões também. O perigo está em cair num lugar ensimesmado. Neste livro não é isto o que acontece, a verdade é que o autor consegue driblar o adversário narcísico e, com leveza, nos convida a adentrar seu universo, que em nada se parece com a tal da positividade tóxica do movimento dos “good vibes” pois a conexão com o mundo real está sempre presente, no mesmo livro em que ele fala sobre meditação, temas como depressão e terrorismo também são abordados.