“Em algum lugar de alguma selva, alguém comentou:
“Como os civilizados são esquisitos. Todos têm relógio e ninguém tem tempo.”[Eduardo Galeano]
sento-me para escrever e imediatamente sinto certa culpa por me demorar tanto em fazê-lo. peço desculpas pela minha ausência, sem nem saber direito pra quem. eu sei: pra mim mesma.
torna-se cada vez mais difícil separar um espaço/tempo para a escrita e a leitura. penso em desistir, em excluir a conta da newsletter. se não dou conta do recado, prefiro não me comprometer. é isso que o ritmo do mundo atual faz com você, te faz renunciar uma coisa aqui, outra ali, e quando você vê só tem tempo pra produzir, e pior, produzir superficialidade.
por que eu comecei a escrever? qual a finalidade disso? pergunto-me como quem busca lógica em algo que, na verdade, se explica por si só. escrever é uma forma de expressão, oras! é uma linguagem. é um se relacionar. é um desabrochar. é a etapa ‘final’, o resto, a conclusão inconclusa. é aquilo que pede um último momento de vida. aquilo de dentro que, ao sair, se concretiza, não mais com ar de vida, mas de morte. sim, as palavras aqui, cada uma delas que escrevo afirmam a morte de uma ideia, são acúmulos de saliva que se tornaram cuspes, são vômitos, são as entranhas pedindo pra sair, são as coisas feias e bonitas de dentro, tudo ao mesmo tempo. morte e vida.
a escrita vive em todos nós. ela sempre está. nos acompanha em cada pensamento, observação, em cada nó interno, numa dor no peito. a escrita está à espreita, pronta pra que você a torne real, pronta para que você possa parir seu mundo conflituoso e que isso lhe dê algum tipo de gozo, que isso lhe dê algum tipo de filho, algum tipo de fim concreto, visual. um conto, uma anedota, um romance, uma não-ficção. a escrita não segue nenhuma lógica temporal, cada um escreve no seu tempo, do seu jeito, cada um prepara um ritual próprio para que ela exista.
volto ao exemplo do vômito, um vômito avisa que vai chegar, mexe com seu estômago, te deixa enjoado, finge que não virá mais e faz você sentir certo alívio, de repente ele volta, às vezes com tudo, às vezes faz você ir e voltar, ir e voltar. ele sabe seu destino, ele sabe os caminhos, mas você precisa senti-lo à sua maneira para que ele possa sair de você.
volto ao exemplo de parir, porque a escrita tem o tempo de gestação, não aquele de nove meses, um tempo desconhecido, porém familiar, mas é preciso gestar, passar por algumas dores, modificações de perspectiva de vida, é preciso enjoar, ressignificar, deixar partes suas morrerem até o dia de seu nascimento, o grande dia, no meu caso ele geralmente se dá em manhãs frias.
eu escrevo pra me humanizar.
[eu não sou nada além de palavras]
lembro que decidi começar a newsletter muito porque sentia que no Instagram não cabia a complexidade daquilo que eu gostaria de expressar. ali, não somente era um fragmento muito superficial de mim, como também era demasiado manipulado, é feito para atingir metas, números. aqui eu posso dizer e desdizer, aqui eu te encontro numa lógica em que a imagem é apenas coadjuvante, um brinde, o nosso bônus, mas também é aqui que uma imagem ganha outro valor, pois, envolta por um texto cheio de ideias e encadeamentos, a imagem está apoiada em uma estrutura profunda, densa, sólida.
sou do signo de terra, preciso sentir meu chão firme. amo a sensação de quando o avião está por decolar ou no momento do pouso, mas me desespero com ele quando está no ar. perder o chão assim, de maneira tão literal, me causa desconforto, ao mesmo tempo, provavelmente me torno muito mais interessante, pois estou vendida, vulnerável e solta no mundo. acaba que, no fim das contas, amo voar. veja só, aí reside a complexidade humana, nessas tantas contradições, nessas tantas camadas que tentamos dar conta num mundo que sempre nos pede para ser o mais previsível possível, num sistema econômico cruel em que nos colocam em caixas para nos “atender melhor”. vejo estatísticas de jovens que transam menos, com tendências para a depressão e ansiedade cada vez mais precoces, vejo artistas em seus perfis de rede social eufóricos por nos provar seu valor, por dar satisfações das mínimas coisas de suas rotinas, porque somos forçados a nos vender o tempo todo. um furor terrível os tempos que vivemos, cada vez mais dependentes do olhar alheio. cada vez mais blackmirrorizados. uma armadilha em que caímos, difícil de sair.
a escrita é uma ferramenta que me permite sair um pouco dessa lógica, eu não me vejo como imagem, mas tenho um encontro comigo mesma sob um ponto de vista outro. aqui eu posso voar mais alto, mas quem pilota este avião sou eu. aqui sobrevoo meus pensamentos na altura de montanhas, aqui escrevo e reescrevo as turbulências de uma mulher que sabe que os tempos de hoje não são fáceis, mas quando mesmo que eles foram?
perdemos uma grande artista, Rita Lee. a rede social foi quase que completamente tomada pelo seu nome, pelas suas frases, suas imagens. haverá outra? não. como todo ser humano ela é única. mas ao olhar para a juventude e pra minha geração de artistas me pergunto onde estarão aqueles que, assim como ela, peitarão, ousarão, aquelas que transformarão a armadilha? ou melhor, aqueles que nem cairão na armadilha? serão somente aqueles poucos privilegiados? é preciso privilégio para ter coragem? para realizar projetos autorais? para estar em posições de poder? não acredito nisso. ainda acredito no talento genuíno de cada um. que os privilegiados joguem luz sobre aqueles que têm algo essencial para presentear ao mundo. eu tenho certeza de que está cheio de mulheres com a mesma autenticidade, firmeza, talento e criatividade que Rita Lee, mas talvez não a estamos enxergando porque elas não têm um grande número de seguidores, elas não têm o privilégio da possibilidade do risco, de se jogar, de ser quem se é sob os holofotes. Enquanto isso ficamos a testemunhar uma maioria de pessoas com tão pouco pra entregar, mas com um marketing tão bem feito (pessoas-produto), que acabam ditando o que é arte e cultura.
“Hoje está difícil qualquer coisa aparecer que não seja a indústria do entretenimento e a grana ditando. Isso tem um preço, um empobrecimento.”
[Italo Diblasi]
”Ao menos antes, na indústria cultural clássica, o marketing era terceirizado (…) Hoje, cabe aos artistas moldar a sua personalidade para gerar engajamento, e a arte para virar conteúdo.”[Clara Drummond]
Artistas precisam acessar a sua interioridade, se conectar com a sua essência, seja ela como for, sem julgamentos. Artistas precisam se conectar com a sua alma. Quando colegas de trabalho perguntam minha opinião sobre performances é isso que me vem à mente. Não adianta você se encaixar num molde de boca, nariz, barriga, se você não se conhece por dentro, não assume as suas sombras. E isso leva tempo. Num teatro de bonecos ou de máscaras geralmente ficamos encantados, por quê? Porque existe humanidade por trás da máscara, é aí que a mágica acontece!
Um artista está o tempo todo sendo artista. Nossa sensibilidade é de dentro pra fora e de fora pra dentro, é um ciclo que não se limita a uma imagem, um cargo ou números.
“Quando o seu maior desejo é ser desejado, a maior parte da sua interioridade está la fora.”
[Liliane Prata]
Você pode estar se perguntando o que podemos fazer. O que eu te digo é que
continua…
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