Quando minha sobrinha grita e esperneia ou emite sons graves, como o rosnar de um cão de pequeno porte, a primeira coisa que eu tento fazer é acalmá-la e depois lhe pergunto o que houve. Às vezes ela ri, acho que de mim (por supervalorizar aquele momento, não era nada, apenas um grito) e às
vezes ela faz um bico que aponta para o início de um choro/escândalo. Ela joga comigo e, com certeza, ela quem domina o jogo, eu me sinto um gandula, como se eu fosse seu pegador de bolinhas de tênis.
O tempo entre o momento em que ela percebe a beleza de uma flor e a pega com cuidado e o impulso que ela tem de apertá-la entre seus dedinhos e fazer com que a flor perca sua forma divina é bem curto. E eu, desesperada, tento salvar a flor (e todos os seres que Dora agarra com suas mãos) e lhe digo com uma voz doce, mas não menos imperativa: - Carinho, Dora, carinho… ao que já cheguei ao ponto de acariciar até um controle remoto para que ela não o quebre. Agora, toda vez que ela se aproxima de algo com certa fúria (advinda de sua inesgotável curiosidade pela vida) e eu digo o tal do - Carinho, Dora, carinho… ela desacelera e logo acaricia aquilo que minutos antes ela iria destruir e me olha enquanto o faz, mais que ao próprio objeto, como que dizendo - Viu tia? Eu estou fazendo carinho porque você pediu. E neste exato instante, é aí que eu sou tomada por uma enorme sensação de culpa. Sei que a minha intenção com ela é boa, no entanto penso seriamente sobre os efeitos desse tal carinho carinho… Não gostaria que Dora fosse tão disciplinada principalmente se isso se der em detrimento de seus instintos. Não desejo que Dora descubra tarde que não é com todo mundo que você se relaciona no carinho carinho. Então que meu objetivo agora é buscar coisas que possamos destruir juntas, ou, ao menos sujá-las, bagunçá-las. Decidi começar a rosnar como ela (e a raça pinscher) e ela adorou, não parou de rir e tive que fazer inúmeras vezes este personagem. E de uma tia babona eu tenho me transformado em seu pet preferido. Ela ama me ver latir, veja só! E eu termino o dia rouca, cansada, literalmente com a língua de fora.
Acabei de voltar de mais um mergulho profundo no teatro. São mais de dez anos experimentando esta atividade, mas posso dizer que este foi um dos processos mais intensos que vivi. E quando decidi participar, da maneira que quis participar, eu pressenti que ali havia um aprendizado sem tamanho. E assim foi. Sinto que pedaços meus ficaram por lá. E olho pra trás e penso quantos pedaços nossos vão ficando nos lugares em que nos entregamos de maneira visceral. Eu me sinto uma mulher cheia de cicatrizes. Há dor e há beleza, mas sobretudo há cada vez mais em mim o senso da realidade, parece que quanto mais eu me aproximo da cena, do teatro, mais eu me conecto com a crueza da existência humana. Eu entro numa sala de ensaio e aquela se torna a minha vida real e não meu sonho; olho um texto e o vejo como ele é, trato de respeitar suas palavras, pelo menos num primeiro momento; realizo o ritual diário dos ensaios como o faço dentro da rotina da minha própria casa; dirijo uma cena mentalmente buscando sua concretude, pois para mim a subjetividade nasce a partir daquilo que existe e que faz sentido e por fim, eu me dirijo aos atores objetivamente, olhando fundo em seus olhos, tratando de não dissimular. Minha relação com eles acompanha o modo como trato as outras pessoas de todos os outros setores daquele projeto. Eu sempre gostei de trabalhar com diretores(as) assim. Existe uma cultura antiga da relação de diretores com seus atores,