”A coisa mais difícil de aprender na vida é qual ponte atravessar e qual ponte queimar.”
[Bertrand Russell]
Quando nos despedimos de uma vida que estávamos acostumados, nos despedimos de uma versão nossa. Iniciamos um processo de luto de certos hábitos, de um tipo de corpo, de uma linguagem e de sonhos. Todo tipo de luto precisa de tempo e espaço. Os lutos nos dão a oportunidade de fazer nascer uma nova versão de nós mesmos. Para isso é preciso muita paciência, dedicação, amor próprio e criatividade.
Ressignificar a vida é trabalhoso. Se abrir para o desconhecido exige coragem e para se chegar até a força necessária há de se conhecer, antes de mais nada, os pontos fracos, tocar nossas vulnerabilidades e encarar conscientemente as sombras que nos habitam.
”Qualquer árvore que queira tocar os céus precisa ter raízes tão profundas a ponto de tocar os infernos.”
[Carl Gustav Jung]
O autoconhecimento tem sido meu compromisso diário, não somente na hora da terapia. Eu criei mecanismos para incorporar em todas as minhas atividades esse estado de atenção sobre mim. Esse exercício também se deu através de um mini retiro, através do contato com a natureza, do distanciamento, da observação silenciosa da vida. Meu desafio maior é equalizar o tempo de fora com o tempo de dentro. É como se eu estivesse aprendendo a dançar meu novo ritmo. E assim tem chegado um pouco melhor para mim a compreensão de quais são os meus limites.
Eu disse muitos nãos nos últimos meses, precisei de concentração porque o mundo é cheio de distrações e entendi que algumas delas são boas, mas outras não estão de acordo com meu processo atual. Meu tempo é precioso e isso não quer dizer que eu tenha que ser produtiva, pelo contrário, hoje meu tempo é importante sobretudo para que eu possa viver também de contemplação. Me tornei mais ‘apreciadora’ da vida. Eu sempre fui conectada com a sutileza dos detalhes das pequenas coisas (como boa virginiana), mas hoje faço isso com prazer mais do que com julgamento. Percebi que minha intuição quanto ao hábito de cultivar meus pequenos prazeres nunca falhou, porque a verdade é que aquele momento em que eu voltava minha atenção para a janela num fim de tarde silencioso, com um céu colorido se despedindo de mim, era mesmo um chamado pra dentro, era a natureza da vida se comunicando com a minha essência, que não é a de uma pessoa apressada e estressada, eufórica e escandalosa. Eu me sinto confortável e feliz quando posso ter calma e delicadeza no meu entorno. Um ambiente saudável para o meu ser é um lugar feito de beleza e poesia. Aquele pôr do sol era como uma despedida amorosa, um abraço do Universo. A Terra nada mais é do que um útero que nos acolhe, já temos tudo de que precisamos, ela nos nutre o tempo inteiro.
Mas eu sei que a realidade não é feita só disso, no entanto serei incansável na construção deste mundo para mim e para os que me rodeiam.
'a ferida ensina o caminho
canta um mantra
mostra um mapa
sobreviver é uma forma de
entrega'
[Maíra Ferreira]
Uma das perguntas que mais me acompanha é se eu estou no caminho certo. Nunca saberei responder. Entendi que tentar fazer a coisa certa é viver num aprisionamento mental. Não existe certo ou errado, existe aquilo que serve pra você, por isso é preciso silêncio, para escutar a voz do coração, ela não mente. O corpo também não mente.
”A única pessoa com quem você tem que se comparar, é com você no passado.”[Freud]
Abro minha gaveta e pego minhas fotos de infância. Me debruço sobre elas, me vejo como uma espectadora de mim, sentada numa cadeira em uma fileira longínqua. Às vezes me escapa um riso ou outro. Acho engraçado que eu tenha escolhido tal roupa para sair, ou que eu tenha feito uma careta na foto sem pensar se sairia bonita, me emociono com meus pais jovens, me deparo com alguns amores antigos, penso que eu tinha muita energia para acreditar nas parcerias, rs! Que menina sonhadora! Vejo meus trabalhos como atriz mirim. Desconheço uma vida sem o teatro, o cinema, a televisão. Meu trabalho me levou para caminhos inimagináveis, sinto coisas boas dentro de mim. Acho algumas fotos de um aniversário supresa que me fizeram na adolescência, em todas elas estou com as bochechas vermelhas, envergonhada. Uma festa surpresa foi algo que me assustou. Eu sou apegada ao que planejo, preciso sentir que me preparei para viver algo. Lembro-me de ver pessoas lá que eu jamais convidaria voluntariamente para a minha festa. Lembro também que tive medo de quem mais poderia chegar. Eu não me sentia bonita o suficiente para a ocasião, já que havia me arrumado para um simples jantar. Percebi o quanto sou controladora. Começo a chorar. Cai uma ficha. Acho que perdi muitos momentos por não me permitir relaxar, por ter medo de que alguma coisa pudesse sair errado. É muito dura a vida assim e é também muito duro reconhecer certas características nossas, mas acolhê-las nos faz justamente sair da idealização de alguém que existe só em nossa cabeça ou só na cabeça dos outros.
”Onde o outro entra na sua própria arquitetura desejante?”
[Maria Homem]
Comecei a aceitar agora que as coisas fora de mim nunca serão exatamente como eu quero, elas são como são. Reais. Com rachaduras. Imperfeições. Percebi que muitos desejos meus queriam ser realizados mais por birra, para não abrir mão de uma expectativa em querer fazer dar certo. Me aliei a tarólogas, astrólogas, mapas e teorias para garantir que tenho razão. Para legitimar uma certeza impossível de se alcançar, pois tudo o que é vivo nunca lhe dará garantias. A escolha certa, dizer sim ou não prontamente, escolher, escolher, escolher. Essa minha mente radical tem a ver com o fato de que tudo deve, na minha cabeça, se comportar conforme o planejado. Que as pessoas dancem a minha coreografia, quando isso vai contra a ideia de liberdade, de leveza e movimento. Ninguém está aqui para fazer o que eu quero. Se eu quero algo, eu tenho que ir em busca disso, a dona do meu desejo sou eu. Pegar o desejo pela mão. Mas sem pressa. Porque é preciso gestar o desejo. Examiná-lo. Entender suas razões. Isso que eu quero tanto tem sua origem onde? Este desejo é meu ou é do mundo?
O controle é um caminho que nos afasta não somente das pessoas, mas sobretudo de nós mesmos e ele tem mais a ver com querer parecer algo (para o outro) do que ser algo (para si).
Quando me deparei com essa foto senti um desconforto.