[aqui a ideia é saborear as palavras, pausar, tomar um café, voltar, quem sabe dormir e abrir a newsletter novamente apenas no dia seguinte ou dentro de vários dias. encontrar espaços de reflexão e respeitar seu próprio ritmo. peço que não se deixe intimidar pela quantidade de texto. sugiro que leia aos poucos, em partes.
desejo uma boa leitura e, se a experiência for agradável, peço que compartilhe ou contribua como puder.]
De dentro do ônibus, no percurso dos caminhos que trilho por São Paulo observo os grandes clichês de uma metrópole: pessoas apressadas, trânsito de carros em plena luz do meio dia, ar seco, pior, ar seco carregado de resquícios dos materiais das inúmeras obras de construção de prédios que estão em andamento por todos os cantos da cidade; publicidade para todo lado que se olhe, publicidade supostamente engajada para todo lado que se olhe; miséria, miséria, miséria; motos, motos, motos; filas, filas, filas; pessoas que ainda usam máscara, pessoas sem máscara…
Avisto meu ponto, sinalizo e desço. Recobro a atenção para caminhar atenta. Caminhar calmamente até o trabalho me traz uma sensação de liberdade porque é como se eu, intencionalmente, mostrasse à vida que, apesar do caminho estar em minhas mãos, ao realiza-lo com tempo, estou aberta ao imprevisível.
Eu amava morar em Buenos Aires muito por conta das longas caminhadas que eu podia fazer, já que é uma cidade mais planejada e praticamente toda plana. Então aquilo que era sobre, no final do dia, voltar pra casa cansada e com pressa pra fazer o jantar, se tornava, antes de mais nada, um momento só meu. Eu comigo: eu refletida nos espelhos das vitrines das lojas de roupas; eu, espectadora, observando cenas do cotidiano: casais carregando compras do mercado, crianças voltando da escola com seus pais, senhores com roupa de trabalho sentados num café da esquina… e também as sensações: os cheiros que saíam das confeitarias, das ‘panaderías’, a fumaça dos cigarros por entre a multidão, o sol se despedindo e o ar fresco se aproximando, me fazendo parar pra comprar um cachecol que me chamou atenção pela sua cor forte: vermelho.
Ali, naquela fenda que eu abria, o retorno para casa era sobretudo um retorno a mim. Parecia que eu experimentava viver um pouco sem desejo, ou melhor, sem ter a urgência de concretizá-lo.
Para onde vão todos? Onde querem chegar? Há um ponto de chegada? Eu respondo para mim mesma que não. Caminho cinco longas quadras para finalmente alcançar meu local de trabalho. Durante esse trajeto relativizo minhas escolhas de vida, tudo aquilo pelo qual lutei tanto para conquistar, aquilo que manifestei com as minhas próprias mãos, ou, fritando meu cérebro dia-a-dia na obsessiva ideia de pagar as contas e de, com sorte, em algum momento, juntar uma grana pra nem sei mais o quê: uma casa? um carro? os direitos de alguma grande obra? uma viagem e foda-se?
Relativizo porque São Paulo me confunde. O tempo todo preciso recuperar minha lucidez, São Paulo entorpece. Pondero porque, dentro dessa cultura, os papéis que nos foram dados para representar são tediosos, caretas, cafonas, falsos, mesquinhos, maquiados demais, cheios de firula, efusivos, inebriam, mas também são muito previsíveis. Eu quero mais, penso. E quando penso isso quero dizer que quero menos, muito menos.
Nossa cultura é fundada na insatisfação e também nos induz a desejar aquilo que, obviamente, manterá de pé nosso modelo econômico, ou seja, buscamos aquilo que nem sabemos se queremos de verdade e quando, a custo de muito trabalho ou sorte, realizamos este desejo, logo ele se torna obsoleto e queremos outra coisa quase que imediatamente. Estamos obcecados, na maior parte da nossa vida, por desejos vazios, simplesmente porque os desejos não eram nossos.
”O sintoma é o que cada um tem de mais real; é onde há um gozo que não é absorvido pela cultura. O gozo interroga a cultura. É o que podemos extrair de Freud: não é o bem-estar na cultura, mas o mal-estar na cultura.
O bem, o que é isso?
Sem essa pergunta não há estilo de vida.”[Rafael Lobato]
O meio social, principalmente as redes sociais nos cobram uma imagem de que tudo vai bem e “ir bem” hoje significa ter um compromisso com a narrativa de sucesso, de imagens impactantes e legendas que justifiquem nossa própria existência no mundo: ‘me veja trabalhando’, ‘olha como eu amo o que eu faço e olha como eu faço isso com o propósito de salvar o mundo’; o delírio egóico com um pano de fundo apoiado em qualquer tipo de militância. Estamos todos inseridos numa grande publicidade das nossas próprias vidas, com uma fotografia sofisticada, uma mensagem solidária e um making of bem editado com climinha espontâneo. A supervalorização da superficialidade da vida. Uma das coisas que acho mais revolucionárias nos tempos de hoje é se dar menos importância. O que você faz da sua vida é importante, claro, mas não é tão importante assim, amigo! Ou melhor, o importante é que isso seja valioso, em primeiro lugar, pra você mesmo. ;)
Naqueles quadradinhos do Instagram parecemos todos muito preenchidos, mas assim como um caminho linear e feito às pressas para se chegar diretamente ao topo, uma vida muito formatada não se deixa desviar. Os quadradinhos começam então a exibir imagens muito parecidas, adentramos uma sensação confusa entre a energia que damos para a manutenção dessa imagem e o medo de perder de vez a nossa personalidade. Pra além disso, ocupar demais todos os espaços e conseguir tudo o que supostamente queremos nos distancia daquilo que é essencial para nos sentirmos vivos: a falta.
Vejo ao meu redor muita gente insatisfeita, frustrada, ansiosa. Pessoas cheias de potencial para criar coisas lindas, mas sem ânimo porque medem sua vida pela régua de um mercado cruel e de uma sociedade adoecida, fanática pelo poder. Nos vendem que o poder é tudo, mas poder é diferente de liberdade.
continua…
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